segunda-feira, 31 de maio de 2021

PLAYBOY ENTREVISTA PAUL E LINDA MCCARTNEY

Era uma vez uma dupla. E que dupla — a alma e o coração de um grupo legendário que há 20 anos desfechou uma revolução na música e no comportamento dos jovens do mundo inteiro. Juntos, eles alcançaram um sucesso simplesmente incomparável e trans­formaram-se em dois dos grandes mitos deste século:John Lennon e Paul McCartney.
Lennon foi assassinado na madrugada de 9 de dezembro de 1980 e com ele, numa calçada ensanguentada de Nova York, mor­reu definitivamente o sonho de algum dia se ver os Beatles, que se separaram em 1970, reunidos outra vez. McCartney, distante e inacessível, virou um enigma. No início de tudo, durante os tempos heróicos de Liverpool, seu jeito amigo e afetuoso fizera dele o porta-voz ideal para o quarteto. (Apenas pa­ra registro — e para esclarecer a todos os que viveram fora do planeta nas últimas dé­cadas - os outros dois eram George Harrison e Ringo Starr.) Desde a separação, no en­tanto, a imagem de Paul mudou. Com uma vocação inegável para o sentimentalismo musical, num contraste multa claro com as composições bem mais elaboradas de John, cuja adoração póstuma foi crescendo, ele passou a ser considerado superficial, vazio, quase descartável. E ainda por cima irreve­rente, desrespeitoso, por chocar milhões e mi­lhões de fãs com uma observação no mínimo decepcionante sobre a morte do velho compa­nheiro: "Que chateação!"
Depois de várias temporadas de excur­sões e discos com sua nova banda, os Wings, seguidas de gravações individuais, sempre com indiscutível êxito de público, Paul decidia fechar-se em si mesmo. Apare­cia vez ou outra para lançar uma canção e eventualmente, ser preso sob acusação de porte de maconha. O próprio Lennon con­tribuira para as controvérsias em tomo de McCartney, alfinetando-o pela ingenuida­de e a forma comercial de certas músicas suas. Isso ficou claro na histórica entrevis­ta que concedeu a PLAYBOY, às vésperas de sua morte (e que publicamos em dezembro de 80, num encarte especial). Ali, ele insi­nuava que as melodias de Paul eram fá­ceis. Simplórias demais. Embora Paul pro­curasse se defender, sua tendência para se distanciar de tudo for se acentuando. Quan­do tentava quebrar essa couraça, com decla­rações ocasionais, parecia pedante — e era manhoso nas respostas.
Se não bastasse, sua mulher, Linda McCartney, também jamais conseguiu ser simpática com a imprensa. E a imprensa de sua parte, dava a impressão de conhecê-la tão pouco que, por causa de seu sobrenome de solteira, Eastman, identificou-a erronea­mente como herdeira da fortuna Eastman Kodak. O pai de Linda, na verdade, ê um renomado advogado de Nova York, onde ela nasceu em 1941 — um ano antes, portanto, do que Paul, filho de um vendedor de teci­dos, que foi também músico profissional, e de uma parteira. De mais a mais. Linda era acusada de presunçosa, por ter participado do conjunto do seu marido, e de intrusa, tal qual Yoko Ono — corno ela, teria contribuí­do para a dissolução das Beatles.
Há cerca de um ano, porém, Paul e Lin­da ensaiaram uma série de conversas espo­rádicas com a jornalista Joan Goodmann. Mais tarde, Joan lhes propôs trocar os pa­pos informais por uma entrevista séria pa­ra ser publicada em PLAYBOY. Os McCartney toparam — e os encontros entre eles, a partir de então gravados, prossegui­ram através dos seis meses seguintes. Pela primeira vez, Paul falou em profundidade sobre sua relação com John Lennon, as reações que teve diante de sua morte, a separa­ção dos Beatles, seu processo de criação, seu cotidiano doméstico, seus sentimentos a respeito de si mesmo e sua música, com ou sem o grupo lendário. Contagiada pela franqueza do marido, que enfim resolvia abrir a alma, Linda venceu antigas resis­tências e constrangimentos para participar decisivamente da entrevista. Eis o relato da repórter Joan Goodmann:
“Eu havia sido avisada, por gente que não conhecia Paul direito, para ser muito cuidadosa. Paul era um vaselina, diziam. Costumava manobrar a imprensa, usando seu charme como arma e escudo. E eu estava assim, cheia de... coisas, quando fui pe­la primeira vez a Ellstre Studios, nos arre­dores de Londres, onde estava rolando Give My Regards to Broad Street (ainda sem título em português, mas que pode ser traduzido como Dê Minhas lembran­ças para Broad Street), um filme com rotei­ro, produção e músicas de Paul, que é, com Linda, seu ator principal. Foi lá, ao vê-lo trabalhando, com veloci­dade, sob pressão do tempo e nos limites do orçamento, que passei a conhecê-lo melhor e a respeitá-lo mais. Ele não é charmoso e bonzinho o tempo todo, mas é um bom sujeito. E, para alguém que não precisa levantar um dedo para continuai vivendo, não há dúvidas: ele de fato trabalha um bocado. Um dia, durante as filmagens, o produ­tor George Martin me disse: 'Acho Paul um gênio. É uma alegria trabalhar com al­guém assim. Mas há muita gente que diz para pessoas corno Paul que elas são bri­lhantes e não fazem nada de errado. Ora, os gênios também cometem erros. Paul sabe disso. Seu ego não gosta, mas ele tem cons­ciência de que é assim’. Como repórter, des­cobri que é verdade. As primeiras entrevis­tas foram hesitantes. Depois, pareceu se sen­tir menos ameaçado e surgiu o outro lodo de sua personalidade: ele tem uma necessi­dade, uma compulsão de dizer a verdade. Nesse tempo que passei com eles, ficou igualmente claro para mim que as relações entre Paul e Linda são as de um casamento à antiga. Paul é o homem que sai para a rua e trabalha para trazer dinheiro, e o mo­do de vida deles — a opção pela comida ve­getariana, o gosto pelo campo, a determina­ção de proteger as crianças da fama dos pais — é obra de Linda. Eles se ajustaram como casal no decorrer dos anos, e a famí­lia aprendeu a separar Paul McCartney, o superstar, de Paul McCartney, marido e pai. Foi Linda quem me contou: 'Em casa. Paul é papai. Mas, quando o pequeno James o vê na televisão, ele sempre diz: Olhe, mamãe, o Paul McCartney!".
PLAYBOY — Já passou bastante tempo desde o assassinato de John Lennon. Vo­cê pode falar sobre isso agora?
PAUL McCARTNEY — Sim, claro... mas eu sou introspectivo. Não gosto muito de falar essas coisas para o público. Além do mais, para mim é quase impossível falar de John sem virar um maníaco.
PLAYBOY — Qual foi sua primeira reação quando soube da morte de John?
PAUL — Meu agente me telefonou cedinho. Linda estava levando as crianças pa­ra a escola.
LINDA MCCARTNEY — Eu já tinha levado as crianças e estava voltando. O rosto de Paul estava... meu Deus!... Horrível — nunca mais vou esquecer.
PAUL — Foi um negócio muito louco. To­dos nós estávamos abismados. Como na morte de Kennedy, o mesmo momento terrível. Ninguém conseguia entender, eu não conseguia.
PLAYBOY — Na época, entretanto, você só disse "Que chateação!"
PAUL — Vou lhe contar o que aconteceu. Naquela manhã, quando soubemos da morte de John, os outros três Beatles, seus amigos, reagiram do mesmo modo. Isto é, todos nós fomos trabalhar — cada um no seu trabalho. Ninguém podia fi­car em casa com uma notícia dessas na cabeça. Precisávamos trabalhar como lou­cos para não pensar na coisa. Assim, trabaihei o dia inteiro, mas em estado de choque. Quando sai do estúdio, apare­ceu um repórter que me apontou o mi­crofone e perguntou: “O que você acha da morte de John?'' E eu respondi: "Que chateação!" Eu usei a palavra em seu sen­tido mais profundo: chateado, amolado, aborrecido, magoado. Mas nos jornais apareceu apenas "Que chateação!" E ca­da um entendeu o que quis.
PLAYBOY — Você sempre tende a dar res­postas irreverentes, não é mesmo?
PAUL — Eu sei o que você quer dizer. Quando minha mãe morreu, eu disse apenas: "E como vamos enfrentar as despesas?" Nunca me perdoei pelo que eu disse, mas foi tudo que consegui dizer no momento. Como certas crianças: quando lhe dizem que alguém morreu, elas começam a rir.
PLAYBOY — Por não conseguirem supor­tar a própria emoção?
PAUL — Exatamente.
PLAYBOY — A respeito de John, o que você poderia dizer?
PAUL — O que você diria?
LINDA — A dor era mais forte que qual­quer palavra.
PAUL — No fim do dia, fomos para casa, vimos as notícias na TV e então senta­mos com as crianças e choramos a noite toda. Não podíamos suportar...
LINDA — Até hoje, a gente chora quando escuta uma das canções de John; não dá para evitar.
PLAYBOY — Lembra-se de sua última con­versa com John?
PAUL — Lembro, sim. Foi muito boa, e es­sa última conversa foi uma espécie de consolo para mim. Porque nós jamais, no passado, conseguimos acertar nossas diferenças. Mas naquela última conversa, por telefone, foi ótimo e não explodi­mos um com o outro. Podia ter sido outro daqueles telefonemas em que a gente estourava e um batia o fone na ca­ra do outro.
PLAYBOY — O que vocês falaram?
PAUL — Foi um papo gostoso e feliz sobre nossas famílias. Ele estava gostando muito de sua vida e Sean [filho de John] era responsável por grande pane dessa felicidade. Também estava querendo continuar sua carreira... Eu me lembro, ele disse "Oh, Deus. Eu pareço minha tia Mimi, zanzando pela casa de roupão, ali­mentando os gatos, cozinhando e toman­do chá. Esta dona de casa precisa de uma carreira!’ Ele estava a ponto de lan­çar o disco Double Fantasy.
PLAYBOY — Voltando à sua irreverência a respeito da morte de John, esse não é um traço de sua personalidade? Mostrar pouca emoção por fora e se despedaçar por dentro?
PAUL — É isso. Minha mãe morreu quan­do eu tinha 14 anos... uma idade ruim... esse começo de adolescência, em que a gente está começando a ser homem, a ser macho. Esta foi uma das coisas que li­gavam John e eu; ele perdeu sua mãe quando tinha 16 anos. E nosso modo de encarar a coisa era rindo — não no cora­ção, só no rosto. Quando alguém pergun­tava pela mãe de John, ele costumava res­ponder, bem seco: "Ela morreu”. A gen­te se divertia ao ver como as pessoas fica­vam embaraçadas. Era uma espécie de brincadeira que tínhamos, entre nós. Acho que ajudou a gente a ser amigo; e ajudou na nossa parceria profissional. Éramos muito bons companheiros — até que os Beatles começaram a rachar e até quando Yoko Ono apareceu.
PLAYBOY — E aí...
PAUL — Eu... todos nós gostaríamos de fa­zer alguma coisa para quebrar aquela mágica que havia entre John e Yoko. Um dia desses, eu estava escutando meu segundo disco solo, Ram, e lembrei de uma pequena referência a John. Ele gos­tava de dizer o que os outros deviam fa­zer e eu, naturalmcnte, sempre torcia o nariz. Então, resolví em uma das músicas do Ram: Muita gente dando conselhos gratuitos. Acho que era isso. Era uma pe­quena alfinetada em John e Yoko, que queriam ensinar o mundo a viver.
PAUL — Eles enten­deram mais do que deviam... Acharam que o disco inteiro era sobre eles! Ficaram doidinhos! Era bem coisa de John e Yoko. Eles pegavam uma coisa pequenina e a transformavam. Na verdade, o disco que eles fizeram depois era dirigido a todos nós, os outros Beatles. E nós dissemos; "Veja só, nós fizemos 2 por cento: eles. 200 por cento". Uma loucura!
PLAYBOY — Em quase todas as suas entre­vistas. John dizia que no coração, ele nunca havia deixado os Beatles. Você acredita nisso?
PAUL — Não sei ao certo. Eu apenas sus­peito que ele realmente nos deixou, isso aconteceu de verdade, era bem do jeito dele esconder essas coisas.
PLAYBOY — Você chegou saber o que John pensava de você?
PAUL — Acho que sabia. Mas, obviamente, as vezes minha fé era abalada. Então, nós começamos um a xingar o outro, nos separamos e eu não soube mais nada.
PLAYBOY — E mesmo nesse clima, antes da separação, vocês conseguiam fazer música?
PAUL — Claro! Isso de um modo ou de outro, sempre existiu. E foi uma das me­lhores coisas sobre Lennon e McCartney: a competição entre nós. Era ótimo, mas de convivência difícil. Deve ser uma das razões pela qual as parcerias geralmente se desfazem. E, naturalmente com uma mulher forte como Yoko. John mudou mais ainda.
PLAYBOY — O relacionamento de vocês dois com Yoko mudou depois da morte de John?
LINDA — Sem comentários!
PAUL — Quando perguntaram, depois da morte, se os Beatles a tinham confor­tado, Yoko disse: “Sem comentários".
LINDA — Mesmo com Ringo tendo viaja­do até lá, para vê-la. Mesmo com todos os telefonemas que fizemos.
PAUL — Nunca me dei bem com Yoko. E só comecei a entendê-la, um pouco, de­pois da morte de John. Logo depois, per­guntei se podia ajudar em algo, em no­me de minha velha amizade com John. Como ela recusasse, pensei: "ótimo!" Mas então eu refleti: ela estava passando pela grande tragédia de sua vida e eu se­ria simplesmente insensível e louco se dis­sesse — “Já que ela não está sendo boazinha para mim, não serei bonzinho para ela". Foi um modo de começar a conhecê-la. Olhando as coisas de outro ponto de vista que não o meu. Acho que isso se chama amadurecimento. Então, descobri que eu tinha uma série de coisas em co­mum com Yoko.
PLAYBOY — Por exemplo?
PAUL — Estávamos na mesma posição... nossa fama e as pessoas que conhecía­mos...
PLAYBOY — Desde que você sentiu que podia entender Yoko, você falou com ela a respeito de John?
PAUL — Sim, sim. E me ajudou muito. Fiquei sabendo, então, que ele realmente gostava de mim. Yoko me disse que uma ou duas vezes eles escutaram meus dis­cos. Nessas ocasiões, John ficava olhando para a vitrola e dizia: “Aí está ele". Bem... foi importante ter penetrado as­sim na intimidade deles.
PLAYBOY — Os elogios de John significa­vam muito para você, quando ele estava vivo?
PAUL— Muito, muito mesmo. Mas houve poucos elogios. Lembro-me de um. Quan­do a gente estava filmando na Áus­tria. Eu normalmente dividia um quarto com George (Harrison). Mas dessa vez es­tava com John. Havíamos passado o dia esquiando e estávamos cansados. No quarto, coloquei para tocar uma fita dos Beatles — provavelmente Revolver, ou Rubber Soul. Uma que tem Here, There and Everywhere [Revolver], E pela pri­meira vez, que eu me lembre, ele disse um elogio, embora não fosse definitivo: “Provavelmente, eu gosto mais das suas canções do que das minhas". Provavel­mente! Foi o maior elogio que ele me fez. [resmungando] "Provavelmente, eu gosto mais das suas canções do que das minhas". Ôpa! Não havia ninguém por perto, por isso, ele disse... Eu o res­peitava muito. Aliás, todos nós. John era o mais velho, o mais rápido. O mais esper­to, o líder. Nós gostávamos de seu elo­gio. Principalmente porque era raro. Em Come Together, por exemplo, ele queria o som do piano bem grave, bem fundo... E eu consegui deiar do jeito que ele que­ria. Ele gostou muito, eu fiquei feliz. Ele também gostava quando eu cantava co­rno Little Richard. Todas aquelas músi­cas gritadas, no início dos Beatles, era eu cantando como Little Richard. É preciso um bocado de esforço para gritar co­mo um idiota. Às vezes, eu pensava nisso e gritava um pouco menos. E lá vinha John: "Ora bolas! Vamos lá! Você pode cantar mehor do que isso! Vamos lá! Bo­ta isso tudo pra fora!" Está bem, John.... Ele foi certamente a pessoa que eu mais respeitei na vida.
PLAYBOY — Vocês ficaram famosos por brincar com as palavras. Isso começou desde cedo?
PAUL — Você pode chamar isso de pendor literário. Mas naquele tempo coisas desse tipo eram apenas pia­das. Claro, a gente linha uma certa habi­lidade com as palavras. Isso até se tor­nou uma das especialidades dos Beatles. As piadas com as palavras — eram coisa do nosso tempo, dos comediantes dos anos 50. Coisa de Liverpool, onde um bom trocadilho era sempre apreciado. Como você vê, não fomos nós que inven­tamos.
PLAYBOY — Você foi sarcástico agora ao falar a palavra ‘literário'.
PAUL — E a gente tinha um certo interes­se em literatura, também. Li muito...
LINDA — Dylan Thomas e todos os outros autores...
PAUL — Eu gostava muito e ainda gosto. Gostava de ler tudo que era poesia, em­bora muitas delas fossem um pouquinho açucaradas. Nossa intimidade com as pa­lavras era um pouco disso tudo. Mas quando John escreveu In His Own Write, as pessoas disseram que ele era "joyciano". Que escrevia co­mo James Joyce. Sabe o que John disse? “Quem é esse cara?" Está vendo só? A gente não era intelectual, não havia estu­dado nada. As coisas zanzavam no ar e a gente apanhava. Com isso, fazia música, música simples...
PLAYBOY — Você se surpreendeu quan­do John escreveu In His Own Write?
PAUL — Não. Ele costumava fazer coisas assim já quando era jovem. Brincava com as palavras em um jornalzinho — Daily Howl — que ele fazia em Quarry Banks, a nossa escola Era um garoto de 12 anos e muito esperto.
PLAYBOY — Você invejava essa esperteza, esse talento?
PAUL — Não, de verdade. Apenas sua fa­cilidade em ser espirituoso, de dar as res­postas certas e bem colocadas com incríve! rapidez. Mas nós dois éramos os bons, igualmente. Gostávamos de ir para minha casa tentar tocar algumas can­ções... E. não esqueça começamos no mesmo lugar, Liverpool. Quase a mesma rua, dois ou três quilômetros de distân­cia. Um ano e meio de diferença na idade. Conhecimento de guitarra, conheci­mento de música. Tudo minto parecido.
PLAYBOY — Tem um monte de canções que as pessoas acham que você escreveu e foi John; e vice-versa.
PAUL — Tem razão. A coisa era bem mais difusa do que se imaginava Eu li, recentemente, em um artigo, que as con­tribuições de George para o grupo eram mínimas, insignificantes. Mas a verdade é que havia só quatro pessoas que sa­biam o que eram os Beatles. Mais nin­guém. Só nós sabíamos do que estáva­mos falando...
PLAYBOY — Mesmo agora você se coloca na defensiva se alguém ataca um dos quatro?
PAUL — Naturalmente. Ninguém pode desmerecer George, porque havia muito mais por baixo da superfície que todos viam. A mesma coisa com Ringo Starr: na superfície, era apenas um baterista. Mas não teríamos A Hard Day’s Night se não fosse ele. Ele gostava de brincar com as palavras, fazer frases.
LINDA — Foi Ringo que inventou Eight Days a Week.
PAUL— Sim. E ele disse também Tomorrow Never Knows. Ele vivia repetindo es­sa frase... Essa e outras viraram músicas. Dito assim parece muito comum. E não era a única coisa que ele fazia, elabo­rar frases. Isso era só a ponta do iceberg.
PLAYBOY— Você mesmo disse isso, antes. Se só vocês quatro sabiam do que falavam, o que faziam, o resto — o que os outros diziam — era pura teoria. Então você concorda que os Beatles eram maiores do que a soma de cada um?
PAUL — Sem nenhuma dúvida.
PLAYBOY — Muitos artistas que deixaram seus grupos insistem em dizer que seu trabalho individual continua no mesmo nível...
PAUL — Quando nos juntamos, nós qua­tro éramos sem dúvida melhores do que os quatro individualmente. Sabíamos, na­quela época, tínhamos certeza de que fi­caríamos juntos por um longo tempo. Is­so nos fez fortes, como uma família. Nos fez bons à beça. Depois, os negócios in­terferiram...
PLAYBOY — Voltando ao início da carrei­ra: seu pai fez alguma objeção a você en­trar no grupo de John?
PAUL — Ele queria que eu seguisse uma carreira. "Está muito bem que você to­que com o pessoal", ele dizia, "mas você tem de aprender uma profissão”. Ele era um homem comum, um vendedor de te­cidos sem grandes ambições; abandonou a escola aos 13 anos. Mas era muito inteli­gente. Fazia palavras cruzadas para au­mentar seus conhecimentos. Ele me ensi­nou bom senso — o que se encontra mui­to em Liverpool. Já viajei pelo mundo in­teiro. E juro por Deus que nunca encon­trei povo mais cheio de espírito, mais in­teligente, mais delicado, mais cheio de critério e bom senso do que o pessoal de Liverpool. Eles não são importantes ou famosos, mas são espertos, de inteligên­cia natural como meu pai. Gente que 'li­quida problemas com facilidade.
PLAYBOY — Quando você diz isso, as pes­soas podem achar que você não está sen­do sincero. Você está rico e é famoso no mundo inteiro — e diz que gosta de ser uma pessoa simples, comum, normal...
PAUL — Não. Eu não digo apenas que gos­to de ser comum, simples. Eu sou mes­mo. Não é uma contradição. É apenas a minha resposta à questão: "Qual é o me­lhor meio de viver?". Eu acho que é sen­do simples.
LINDA — É divertido.
PAUL — A gente pode até ter um Rolls Royce para cada dia da semana. Mas isso não quer dizer nada, isso deixa as pes­soas frias. Ocasionalmente, por exemplo, eu vejo alguma roupa muito boa, muito bonita, de que eu gosto. Compro, porque posso comprar. E depois não me sin­to bem com ela...
PLAYBOY — Naturalmente, a riqueza me­xeu com alguns desses valores?
PAUL — Quando você começa a ganhar dinheiro, primeiro você compra todas as coisas que sempre teve vontade e nunca havia conseguido. Contrata um motoris­ta, por exemplo. Um dia, você se vê no banco de trás do carro, assistindo televi­são, tentando equilibrar um copo de champanhe e diz: "Era bem melhor quando eu tinha um carrinho pequeno e era obrigado a dirigir eu mesmo" Eu tive milhares dessas divagações nos bancos de trás de limusines. E então decidi desis­tir disso tudo! É um negócio doente. Não aceito mais motoristas!
PLAYBOY — Apesar do conselho de seu pai para aprender uma profissão, foi ele mesmo que o encorajou com a música. Ele chegou a escrever alguma canção?
PAUL — Só uma, quando ele esteve em um conjunto. Não era um conjunto de muito sucesso: tinha de trocar de nome toda hora, senão ninguém os convidava pela segunda vez. Tocavam em tudo que era festinha e barzinho. Minha mãe ti­nha um namorado e obrigava ele a levá- la para todos esses lugares — até que ele desconfiou que ela estava seguindo papai. Eu tive por quem puxar [risos]. Há poucos anos eu peguei essa música de meu pai e fiz a letra, e gravei, com Chet Atkins e Floyd Cramer, em Nashville. A canção passou a se chamar Walking In the Park With Eloise. Então, eu disse a meu pai que ele iria ganhar os direitos autorais pela canção que ele havia escri­to. "Eu não escrevi nada", ele me disse. Eu me espantei, mas ele explicou que só havia "imaginado'' a música, que jamais conseguiria escrever música porque não sabia uma nota. Como eu: não escrevo músicas, apenas as "imagino".
PLAYBOY — "Imaginar" canções é o que lhe dá mais prazer?
PAUL — Quando eu vivia uma vida mais doida, bebendo e encontrando com os amigos, provavelmente eu ficava mais ex­posto a crises e tinha de contorná-las es­crevendo música. No entanto, quando fiz Yeslerday não me lembro de nenhu­ma crise na época. Mas essa coisa de vida doméstica, de cuidar dos negócios, me deixa confuso. Acho que não foi isso que me transformou, mas foi o fim dos Bea­tles. A falta de três grandes amigos, três grandes talentos, isso mexeu comi­go.
PLAYBOY — Você queria que os Beatles continuassem?
PAUL — Eu gostaria que os Beatles jamais tivessem acabado. Queria que a gente continuasse fazendo música e que todo o resto fosse secundário. Mas John não quis. Ele falou isso para Allen Klein [o empresário que John e Yoko haviam contratado]. E Klein disse para John: “Não diga isso aos outros. ." Não sei se posso contar isso, mas o que Klein disse foi: “Não diga nada aos outros até que a gente tenha assinado contrato com a Capitol". A gente não pretendia dizer nada por motivos comerciais. Mas o que me magoou de verdade foi saber que John não ia nos contar nada até assinar o bendito contrato. Eu acho que ele estava muito influenciado por Klein, que era o empresário preferido de Yoko porque fazia tudo que ela que­ria, segundo eu soube. Assim, Klein se tornou o empresário de John por in­fluência de Yoko. É uma teoria minha.
PLAYBOY — Mas você teve sua vingança ao ser o primeiro a falar sobre a separa­ção dos Beatles...
PAUL — Dois ou três meses mais tarde, quando estava para sair meu primeiro disco solo. Um cara que fazia assessoria de imprensa para a gente perguntou o que eu iria dizer sobre os Beatles quando a pergunta fosse feita durante o lança­mento do meu disco. Eu disse que não sa­bia o que falar. E esse cara sugeriu que a gente fizesse uma entrevista e distribuísse. Assim, ele montou algumas perguntas e eu dei algumas respostas, que incluíam o anúncio da separação do grupo.
PLAYBOY — Me parece um pouco calcula­do demais e frio de sua parte.
PAUL — Era para ser só um impresso que acompanharia o disco. Mas quando saiu publicado nos jornais... de fato, pareceu frio, um negócio maluco. Eu responden­do a um questionário. Foi esquisito. E, naturalmente, deixou John chocado. Eu não imaginava que isso iria magoá-lo tan­to, que era tão importante ele ser o pri­meiro a contar.
PLAYBOY — John disse mais tarde que nunca perdoaria você por ter usado a se­paração do grupo como publicidade pa­ra o seu primeiro disco solo.
PAUL — Foi estúpido, mas eu achava que era hora de dizer a verdade. Eu não poderia mentir ao público. Um drama de consciência meu. Na realidade, nunca cheguei a pensar nisso profundamente. Neil Aspinall, leu o “comunicado oficial, quase sem voz. Eu pensei comigo: “Oh. meu Deus. Nós aca­bamos mesmo com os Beatles! Que merda!"
PLAYBOY — E o que aconteceu, então?
PAUL — Linda foi quem sofreu mais. Ela teve de me aguentar...
LINDA— Parecia um pesadelo.
PAUL — Eu fiquei impossível. Não sei co­mo alguém poderia conviver comigo na­queles dias. Um desempregado diria: "Mas você está bem de vida; a coisa não é tão ruim assim". Mas o dinheiro não me importava, apenas a sensação de de­sapontamento. Nunca havia experimen­tado nada parecido. Quando tomei dro­gas, elas me deixavam maluco, mas eu sa­bia que podia me descartar delas. No ca­so do fim dos Beatles, não. Até então, eu tinha autoconfiança, que não perdi mes­mo quando minha mãe morreu — afi­nal, eu não tinha sido o culpado. Mas quando os Beatles acabaram... Foi pior para Linda, que teve que aguentar um cara que não queria sair da cama, que bebia muito, que não gostava de se barbear. Eu era um sujeito mórbido...
LINDA — Autoconfiança é a palavra. Esse negócio todo mexeu com a sua autocon­fiança.
PAUL — Não era caso de suicídio, nem pensei nisso. Mas... vamos dizer... eu não gostava de viver comigo mesmo. Não sei como Linda conseguiu.
PLAYBOY — Como você conseguiu, Linda?
LINDA — Não costumo entregar os pon­tos. Jamais pensaria que era assim e pronto. Mas a coisa toda me surpreen­deu...
PAUL — Ela olhava minhas fotos, da famí­lia ou em capas de revistas, e dizia consi­go mesma “Meu Deus! Eu não pensava que você pudesse ser assim!"
LINDA — Eu acreditava que os Beatles esti­vessem acima desse tipo de coisas... A imagem que todos tinham dos Beatles e de sua música era positiva: mostrava co­mo a vida era ridícula e como a gente de­veria rir das coisas... Eu não imaginava que gente assim tivesse problemas.
PLAYBOY — O que foi que ajudou você a se recompor, Paul, e finalmente formar os Wings?
PAUL — Foi o tempo, só o tempo. Houve também o choque de ter perdido os Bea­tles como conjunto de música... Eu não ti­nha um conjunto com quem tocar. Acon­teceu a mesma coisa com John.
PLAYBOY — A formação dos Wings foi então, o primeiro passo para a recupera­ção?
PAUL — Sim. A resposta para a perda de um emprego é tentar arranjar outro. Às vezes, não é a resposta que a gente dese­jaria — mas eu precisava fazer qualquer coisa.
LINDA — Considerando que você me cha­mou para fazer parte do grupo, você es­lava mesmo topando qualquer coisa.
PAUL — De qualquer modo, funcionou. Fizemos canções juntos — essas canções que as pessoas dizem ser piores do que as do tempo dos Beatles. Tudo que posso responder é: “Desculpem, mas é o me­lhor que eu posso fazer agora. Pode não agradar vocês, mas estou fazendo isso honestamente". O que mais posso dizer? Is­so nos ajudou a retomar nosso caminho.
PLAYBOY — O que você acha da música que você produziu nessa época? É algo de que você possa se orgulhar?
PAUL — Eu costumava pensar que era um trabalho de segunda classe. Mas de­pois eu encontrei gente — não da gera­ção dos Beatles — que realmente gostava dessas canções. Tem gente que mencio­na My Love ou Band on the Run — é óti­mo. Ou Mull of Kintyre ou Ebony and Ivory.
PLAYBOY — Linda, como Yoko Ono, você também é acusada de ter ajudado os Bea­tles a se separarem...
LINDA — Falam muitas coisas de mim: que fiquei snob depois do casamento com Paul; que sem ele eu não seria uma fotógrafa famosa. Está certo, mas essas coisas machucam... embora eu possa su­portá-las. Na verdade, o mais importan­te para mim é o que dizem de Paul. Tal­vez porque ele é o tipo de pessoa que li­ga para essas coisas. E sofre com isso.
PLAYBOY — Como é que você se sente quando artigos e livros dizem que você é uma groupie ou descreve cenas íntimas do Beatle Paul MeCartney? Ou ainda, como no livro The Love Vou Make de Peter Brown (ex-diretor da Apple), em que se fala da relação homossexual entre John e Brian Epstein?
LINDA — Peter era um grande amigo, apresentou Paul para mim. Uma pessoa em quem eu confiava — quando fui para o hospital para ter Stella, deixei Mary, que era um bebê, aos cuidados de­le. Era um amigo. Agora, é como se não existisse. Quanto ao livro... não importa o que ele escreveu, porque Peter traiu minha confiança. Ele nos mandou um exemplar do livro e nós o jogamos no fo­go da lareira. Sobre as experiências de john e de Paul, você pode perguntar ao próprio Paul.
PLAYBOY — Nós estávamos falando sobre o livro de Peter Brown.
PAUL — Ah, sim. Ele disse que ia escre­vei um livro sobre os anos 60, não um li­vro sobre os Beatles. Eu o trouxe aqui em casa — algo que a gente não costuma fazer. Comemos juntos, mostrei-lhe as crianças, nossa vida, tudo. Pensava que ele era amigo. Além disso, aquela fofoca sobre a ligação entre John Lennon e Brian Epstein, em uma viagem à Espa­nha: isso foi muito comentado, mas nem ele nem ninguém pode saber ao certo. E o pior. John não está mais aqui para se defender — nem Brian. Espero que as pessoas que gostavam dos Beatles sai­bam, ainda que vagamente, como nós éramos. E nós não éramos assim. Quero dizer que o tempo de John era gasto com coisas bem mais interessantes, se bem que ninguém é perfeito. Nem Jesus — e veja só o que fizeram com ele.
PLAYBOY — John parece ter feito muitas outras coisas naquele tempo louco. Di­zem que ele experimentou heroína. Vo­cê sabe algo sobre isso?
PAUL — Não, não naquele tempo, pelo menos. Nós nunca vimos.
LINDA — Talvez depois que ele se ligou a Yoko.
PAUL— Minha teoria é que John e Yoko estavam tão apaixonados que começa­ram a adicionar loucura ao amor co­mum. Pelo que eles contaram para a gen­te — e pelo que a gente soube — isso in­cluía qualquer coisa bem doida. Se o ne­gócio era ficar nu, eles ficavam nus. Se o negócio era experimentar heroína... Na­da era demais para eles. Naquela época, falava-se muito em "fazer a cabeça".
PLAYBOY — Vocês mesmo nunca experi­mentaram heroína?
PAUL — Não.
PLAYBOY — Mas você não desconhece ou­tras drogas?
PAUL — Não gostaria de falar sobre mari­juana em uma entrevista. E por quê? Por­que eu tenho quatro crianças e pareceria que eu estou delendendo o uso da maco­nha. Não estou. Mas depois desse inci­dente em Barbados (Paul foi apanhado pela polícia quando portava maconha], com todo mundo dizendo "Menino mal­vado. Você não devia ter feito isso". Bem, como um homem de 41 anos, acho que tenho o direito de rebater essas acusações. Veja bem: a lista das drogas perigosas, eu acho, começa com heroína e morfina - não há saída, depois que se começa. Maconha está no fim da lista. Cocaína está acima da marijuana. Eu usei coca [medindo as palavras]. Mas de­pois a coca ficou muito na moda entre executivos da indústria de discos. Achei que não podia ficar na mesma lama que eles... E eu acredito firmemente que re­médios como Librium e Valium são pio­res que a marijuana. Para mim. Maco­nha é mais fraca do que uísque escocês. Mas, veja bem, isso não quer dizer que estou defendendo o uso da marijuana. Só estou dizendo o que é uma verdade tara mim. Também gostaria de dizer que há coisas que são menos prejudiciais do que a maconha: o ar, por exemplo. Eu defendo o uso do ar todos os dias. Agua e suco de laranja, também; boa comida vegetariana. Mas às vezes isso sai publica­do como se eu fosse o sumo-sacerdote da maconha. É uma estupidez. Eu posso usar maconha ou não. Me pegaram no Japão por causa disso. Passei nove dias sem maconha e não fiquei louco.
PLAYBOY — Como foi essa sua prisão no Japão?
PAUL — Foi um inferno. Mas eu só lem­bro das pequenas coisas boas qur aconte­ceram — como um piquenique que não deu muito certo. O pior foi o caso ter aparecido na televisão... Mas lá na cadeia os outros prisioneiros sabiam quem eu era e me pediram para cantar. Não ha­via instrumentos, eu bati o compasso com as mãos [repete o gesto] — a impren­sa mundial bem que teria gostado de ter uma câmara lá. Bem, eu vi aquele filme. A Ponte do Rio Kwai, portanto sei o que se deve fazer quando se é prisioneiro de guerra! A gente deve rir muito, ser ale­gre. manter o moral alto. Eu fiz um boca­do disso ai.
PLAYBOY — E as coisas ruins da prisão?
PAUL — Lembro que quando entrei na cadeia, minha primeira preocupação era com o estupro. Eu tinha medo de ser es­tuprado. Você não teria medo também? Assim, eu dormia com a bunda virada para a parede. Eu não sabia o que podia acontecer. [Imitando japonês] "Bom dia. Sou amigo carcereiro, né. Precisava favorzinho. né." "Não, não. Nem por uma tigela de arroz.” Fiquei lá mais de uma semana com o mesmo terno verde com que entrei. Nem pensei em pedir roupa limpa: não queria tirar a roupa.
PLAYBOY — Seus problemas legais, desse tipo, são uma coisa. E os problemas le­gais da Apple, os casos financeiros? Seus velhos negócios foram todos acertados?
LINDA — Que é isso? Só se passaram 15 anos! (Rsrs).
PAUL — É claro que já acertamos tudo, quando menos para preservar nossa saú­de mental. Mas houve um bocado de con­fusão ao longo dos anos. Uma vez John Lennon apareceu numa reunião e pediu um empréstimo de 1 milhão de libras! Todos nós ficamos perplexos. Só conse­guimos dizer "O quê!!!", caiu o queixo de todo mundo e a reunião foi cancela­da. Outra vez, nos reunimos para termi­nar com tudo, no Plaza Hotel, em Nova York. Parecia uma conferência de grandes potências — havia milhões de docu­mentos para assinar. George deixou uma excursão no meio. Eu voei da Ingla­terra especialmente para esse encontro, Ringo também... e John não apareceu! George ia à janela, gritava no telefone (para ninguém): "Apareça, seu filho da puta". Mas ele não veio. Em seu lugar, apareceu um mensageiro com um balão de borracha onde estava escrito: "Pres­tem atenção a este balão". Mais nada.
PLAYBOY — Felizmente, a maior parte dos rendimentos de vocês não vinha da Apple mas da editora de músicas, não é?
PAUL — Disso e dos meus discos indivi­duais. Mais ou menos metade de cada. A editora, as músicas que a gente tem, são um negócio fabuloso. Bonito. E eu devo tudo ao pai de Linda e a seu irmão, John Eastman. Lee, o pai de Linda, é uma grande cabeça para negócios. Ele me dis­se: "Se você vai investir dinheiro, escolha um negócio que você conheça. Se você entrar numa indústria de computadores, pode perder uma fortuna. Você não gos­ta de música? Fique na música". O pai de Linda, então, encontrou uma compa­nhia chamada E. H. Morris, em Nova York, que tinha os direitos sobre a maio­ria das melhores canções que já foram escritas, músicas que meu pai tocava: Ten­derly, After You’ve Come, Stormy Weather. O mais estranho é que a geme nunca foi dono de nossas músicas. Outra pessoa tem os direitos de Yesterday, não eu. Mi­nha editora, então, é uma espécie de compensação. Bom, nessa época, tam­bém apareceu um pequeno show off- Broadway que precisava de investidores e Lee perguntou se eu queria produzi- lo. Eu disse que não, que a gente não de­via se intrometer na aventura da equipe. Mas publicamos as músicas. Era o musi­cal Annie, que depois fez sucesso e virou filme. Depois apareceu A Chorus Line, e nós publicamos: e também Cage Aux Fol­ies. E Grease. As músicas de John Travolta. Aos poucos, a nossa casa editora tor­nou-se a maior entre as independentes.
PLAYBOY— O que fez de você um dos ho­mens mais ricos do mundo...
LINDA — Não existem todos esses milhões de que falam os jornais. A fortuna de Paul está sempre nas colunas de fofocas. E é sempre exagerada.
PLAYBOY — O número mais frequente­mente citado é 500 milhões de libras.
PAUL — E o outro é que eu ganho líqui­do 20 milhões de libras por ano.
LINDA — Você imagina quanto se paga de impostos sobre isso?
PLAYBOY — Uma das últimas coisas que John Lennon fez para PLAYBOY foi lem­brar as músicas dos Beatles e falar de pe­quenas particularidades de cada uma. Você pode fazer a mesma coisa?
PAUL — O.K, mas eu não vou nem saber por onde começar.
PLAYBOY — Só algumas músicas. A mais amiga, por exemplo: Love Me Do?
PAUL — Love Me Do — a primeira que nós gravamos. Lembro que no dia da gravação eu estava muito nervoso. John deveria ser o vocalista, mas na última hora eu fiquei no lugar dele porque, no estú­dio, achavam que John deveria tocar a gaitinha. A gente não havia ensaiado aquela música com gaita: George Martin fez um arranjo na hora. Foi de arrasar com os nervos.
PLAYBOY — Do You Want To Know a Secret?
PAUL — Não lembro quase nada. Foi uma canção feita para George.
PLAYBOY— All I’ve Got To Do?
PAUL — Foi John que cantou essa, eu acho. Algumas dessas músicas mais anti­gas eu não lembro muito.
PLAYBOY — All My Loving?
PAUL — Fui eu que escrevi essa. A primei­ra que eu fiz antes a letra, depois a músi­ca. A letra saiu numa excursão, eu estava num ônibus. Depois, achamos a melodia. Um trabalho de cabeça para baixo.
PLAYBOY — I Wanna Be Your Man?
PAUL — Escrevi essa para Ringo. Depois nós a demos para os Rolling Stones... En­contramos Mick e Keith em um táxi em Charing Cross Road, em Londres, e Mick perguntou se a gente tinha alguma canção nova. "Te­mos uma bem aqui", nós dissemos. Geor­ge Harrison havia conseguido o primei­ro contrato para os Stones. A Decca Records estava apavorada, porque os Bea­tles tinham estourado e eles haviam recu­sado contratar a gente, antes. O pessoal da Decca era amigo de George e perguntou-lhe se ele conhecia outros grupos. Queriam livrar a cara. George sugeriu os Stones. E foi assim que eles conseguiram seu primeiro contrato. Hoje, eles não fa­lam mais disso. Mas a verdade é essa.
PLAYBOY — Please Mr. Postman?
PAUL — Influência do grupo Marvelettes. A ideia veio das cartas dos fãs, que tra­ziam geralmenle essas palavras — Please Mr. Postman — no verso dos envelopes. Ou Posty Posty, Don’t Be Slow, Be Like The Beatles and Go Man Go! [Carteiro, cartei­ro, não seja devagar; seja como os Beatles E bote pra quebrar]. Coisas desse tipo.
PLAYBOY — I Should Have Knou Better?
PAUL — Você devia saber mais sobre isso antes da entrevista! Essa é de John.
PLAYBOY— If I Fell?
PAUL — Faz parte de uma fase gostosa — This Boy, Yes It Is. If I Fell. Todas mais ou menos iguais, quero dizer, na mesma linha... como os Four Tops.
PLAYBOY — Então, vocês aproveitavam coisas de outros grupos? Vocês estavam ligados em outros grupos?
PAUL — Claro. Nós éramos os maio­res enganadores da praça. Plagiadores extraordinários.
PLAYBOY — E And I Love Her, foi escrita para alguém?
PAUL — É só uma canção de amor: não foi escrita para ninguém em espe­cial. Eu gostava porque o título era uma frase apanhada no meio, a conclusão de uma ideia. Anos mais tarde. Perry Co­mo fez And I Love Her So. Tentou co­piar a idEia. Eu adoro o tema melódico, até hoje.
PLAYBOY — Can’t Buy Me Love?
PAUL — Foi gravada na França. Ficamos muito orgulhosos quando Ella Fitzgerald gravou também, embora a gente não con­siga imaginar por que ela escolheu essa música.
PLAYBOY — Help!?
PAUL — John escreveu... bem, John e eu. Foi na casa dele em Weybiidge. Foi feita especialmente para o filme.
PLAYBOY — You’ve Got to Hide Your Love Away?
PAUL — Foi influência de Bob Dylan so­bre John. Se você prestar atenção à gra­vação, vai ver que John canta igualzinho o Bob Dylan.
PLAYBOY— Nowhere Man?
PAUL — Isso foi John depois de uma noi­tada. Voltando para casa com o sol nas­cendo... Acho que nessa época John esta­va realmcnte meio perdido, sem saber para onde ir.
PLAYBOY — Taxman?
PAUL — George a escreveu. Eu toquei guitarra... George estava com raiva por que tinha acabado de saber quanto tinha de pagar de imposto de renda. Ele nun­ca se ligou nisso, antes.
PLAYBOY— Eleanor Rigby?
PAUL — Minha. O nome Rigby era de uma loja em Bristol. Eleanor veio de... Eleanor Bron, a atriz com que nós traba­lhamos num filme. Eu só queria um no­me que parecesse normal. Eleanor Rigby era assim.
PLAYBOY — Here, There and Everywhere?
PAUL — Eu estava na piscina da casa de John.
PLAYBOY — Parece que você fez um bocado de música na casa de John, nessa épo­ca...
PAUL — Muitas vezes ele vinha a minha casa. Mas em geral eu ia na dele.
PLAYBOY — Entre as canções que você compôs sozinho. Yesterday certamente foi a de maior sucesso. Como foi que vo­cê fez Yesterday?
PAUL — Literalmente, caiu da cama. Eu tinha um piano no meu quarto... Acho que sonhei com a música, porque acor­dei de repente, sentei ao piano e ela saiu inteirinha, completa. Fiquei encucado, achava que tinha ouvido a melodia em al­gum lugar e estava só botando para fora o que era de outra pessoa. Passei dias e dias tocando a música para todos os meus amigos e perguntando se eles já não a conheciam. Eles me disseram que não, que não existia nada parecido. Não acredito em mágica, no sentido de soitilégio, os astros, signos, essas coisas. Mas acredito numa espécie de mágica que faz você ser um espermatozóide de sucesso entre outros 300 milhões de concorren­tes. Eu não sei como escrevo músicas. Eu não sei como eu respiro. Isso é mágica. Apenas é, apenas existe.
PLAYBOY — Bem... algo menos sulilime: Yellow Submarine?
PAUL — Eu estava na cama. Pensei nela corno uma história para crianças. E de­pois todos nós concordamos que Ringo deveria cantá-la.
PLAYBOY — Good Day Sunshine?
PAUL — Eu estava na casa de John. O sol naturalmente estava brilhando. In­fluência do conjunto Lovin’ Spoonful.
PLAYBOY — Got to Get You Into My Life?
PAUL — É minha, eu que escrevi. Uma das primeiras em que usamos trumpetes.
PLAYBOY — Tomorrow Never Knows?
PAUL— John escreveu a letra a partir de uma versão do livro Tibetano dos Mortos, de Timothy Leary. Uma espécie de bíblia psicodélica. Esta era uma canção sobre LSD; provavelmente a única. To­do mundo pensa que Lucy In The Sky With Diàtnonds era sobre LSD. Mas foi mesmo um desenho que o filho de John trouxe da escola. Nós fizemos uma letra propositadamente psicodélica em cima da ideia. Foi natural. Mas não havia na­da com LSD. Só que esse tempo era para isso: todos descobriram coisas nas nossas músicas, nas capas dos discos. Lembra de Abbey Road? Diziam que eu estava morto, porque na foto da capa eu era o único sem sapatos. As pessoas enxerga­vam muito mais do que realmente ha­via... E a gente deixava a coisa andar...
PLAYBOY — O fato de você ter tomado LSD fez alguma diferença no que você escreveu depois?
PAUL — Acho que sim. Qualquer coisa sempre provoca alguma mudança. Nessa fase, a gente tomava LSD. Mas não para trabalhar.
PLAYBOY — Sgt. Pepper?
PAUL — Foi uma ideia que eu tive um dia em que viajava de Los Angeles para al­gum outro lugar. Pensei que seria inte­ressante se a gente pudesse perder nos­sas identidades e renascer em outro gru­po. Então, tentei imaginar um nome bem maluco para esse grupo — algo co­mo O Show do Remédio Milagroso do Dr. Jook e seu Circo. Algo assim. E cheguei a Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Apenas um jogo de palavras.
PLAYBOY — Getting Better?
PAUL — Escrevi essa em minha casa, em St. Jones Wood. Eu disse “it’s getting better all the time” (está melhorando a cada hora) e John fez aquela frase famosa — “Não poderia ser pior”. Daí saiu o espíri­to da música: uma letra superotimista com um tom sardônico. Típico do John.
PLAYBOY —- Fixing a Hole?
PAUL— Sim, eu que fiz... gosto dela. Tem uma história estranha: no dia em que a gente ia gravar, em casa, apareceu um sujeito na porta dizendo que era Je­sus Cristo. E eu o levei para o estúdio, apresentei-o aos outros: “Este aqui é Je­sus Cristo”. Ele se comportou adequada­mente. Foi a última vez que a gente viu Jesus.
PLAYBOY — She's Leaving Home?
PAUL — A balada que eu mais gosto des­se período. Minha irmã gosta muito — uma de minhas irmãs... Outra coisa que lembro é que George Martin ficou ofen­dido porque eu usei outro arranjador. Mas ele andava ocupado e eu estava lou­co para ver a música pronta. Acho que George Martin teve a maior dificuldade em me perdoar. Eu o magoei; mas não ti­ve a intenção...
PLAYBOY — Being For The Benefit of Mr. Kíte?
PAUL — Foi tirada de um cartaz de circo que John tinha.
PLAYBOY — When I’m Sixty-Four?
PAUL — Quem sabe? Eu escrevi a melo­dia quando tinha 15 anos de idade, no piano, em casa. Uma música de cabaré. Anos mais tarde, eu fiz a letra.
PLAYBOY — Na sua entrevista a PLAYBOY, John disse que não queria falar dessa música, porque ele nunca escreveria uma coisa assim.
PAUL — Quem podia saber do que John gostava? Ele podia dizer que detestava certa música num momento; e um minu­to depois podia dizer que a adorava. De­pendia apenas do estado de espírito de­le... Pouco me importa, eu gosto dessa música.
PLAYBOY — Lovely Rita?
PAUL— Sim, essa é minha. Baseada nas mettermaid (fiscal de estacionamento). Como muitas canções dessa fase — como When I’m Sixty Four, tem um ar irônico. Mas as pessoas leva­ram a sério. Em Lovely Rita, a ideia de uma meter-maid ser sexy era irônica. Existem algumas que até são, mas a maioria...
PLAYBOY— Good Morning?
PAUL — É de John. Foi a vez em que usa­mos um monte de efeitos de som. Havia cavalos, galinhas, cachorros — um mon­te de sons.
PLAYBOY — A Day In The Life? É de John, não é?
PAUL — A maior parte. Lembro de ter gostado muito da frase I’d love to turn you on (Gosto de fazer você se ligar). A BBC suspendeu a música de sua progra­mação. Havia outra frase: ‘Now you know how many holes it takes to fill the Albert Hall' (Agora, você sabe quantos buracos são necessários para encher o Albert Hall). Mas não havia nada rude ou mal­criado. Uma boa música: a orquestra crescendo era ideia baseada em Stockhausen e coisa parecida — música abstrata. A gente pediu à orquestra que começasse nas notas mais baixas e chegas­se, no fim da música, às notas mais altas. Não foi fácil para os músicos. Os violinos começam um pouco depois dos trumpetes. E natural: os violinos tendem a se­guir uns aos outros, são como carneirinhos. Os trumpetes são mais aventurei­ros, são como... bêbados.
PLAYBOY — Back In The URSS?
PAUL — Eu fiz essa música como uma pa­ródia dos Beach Boys. E era uma música de Chuck Berry. Uma mistura. Eu gosto muito da ideia das garotas da Geórgia (duplo sentido com dois lugares, a União Soviética e nos Estados Unidos, com nomes iguais). E de falar da Ucrâ­nia como se estivesse na Califórnia. Sem falar na corrente de amizade que a músi­ca estabeleceu. Eu me ligo nisso. Na URSS, as pessoas gostaram da música, embora os dirigentes do Kremlim não te­nham apreciado nem um pouco. Mas... as crianças gostaram. E isso é que é im­portante para mim.
PLAYBOY — Ob La Di Ob La Da?
PAUL — Eu tinha um colega que gostava de repetir uma expressão de sua terra, a Jamaica: Ob la di. ob la da, life goes on... (a vida continua). E ele ficou chateado porque queria uma parte nos direitos au­torais da música. Eu lhe disse: “Jimmy — era esse o nome dele —, isso é só uma expressão jamaicana, não sua. Se você ti­vesse escrito a canção, naturalmente vo­cê ganharia os direitos”.
PLAYBOY — Como foi para você traba­lhar com outros compositores?
PAUL — Stevie Wonder e Michael Jackson? Adorei. Gosto de suas vozes e do talento dos dois. Mas não foi uma co­laboração pra valer. Foi mais como se um de nós estivesse cantando no disco do outro. Não formamos nenhuma du­pla. Foi apenas uma boa brincadeira, uma coisa gostosa de fazer, como as mú­sicas que eu fiz com Michael. Michael me ligou um dia e disse que queria me ver. Eu perguntei: “Para quê?” E ele me dis­se que queria fazer “alguns sucessos”. Ótimo, ótimo. Mas por isso mesmo não levei muito a sério.
PLAYBOY — Você acha que Michael Jackson é um compositor sério?
PAUL — Não o admiro particularmente como compositor, porque ele ainda não fez quase nada. Prefiro Stevie Wonder. E Stephen Sondheim, provavelmente um dos melhores.
PLAYBOY — Sondheim? Como nos musi­cais da Broadway?
PAUL — Exato. A dupla Lennon e McCartney começou com um aperto de mão como contrato, tudo dividido meio a meio. Parecido com Rodgers e Hammerstein. Para mim, pelo menos. Essa imagem romântica que a gente viu em tantos filmes: dois compositores de Nova York, discutindo a música no piano — “Vamos chamá-la Sinfonia do Jacaré, Joe”, coisas assim. Essa imagem era forte para mim. Lennon e McCartney seriam os Rodgers e Hammerstein (os papas dos grandes musicais dos anos 40 e 50 que com­puseram, entre outros, “Oklahoma”, “O Rei e Eu” e “A Noviça Rebelde”) dos anos 60. Era um sonho meu...
PLAYBOY — Então há uma parte de você que ainda procura um novo parceiro? Alguém que possa substituir Lennon?
PAUL — Não estou procurando nada... Mesmo porque também não procurei por John. Mas admito que se encontras­se alguém com quem eu me sentisse bem para fazer música, não há dúvida de que eu não diria não. Eu gosto de trabalhar assim, em conjunto. Mas o trabalho que eu fiz com John... é difícil imaginar ou­tra pessoa no mesmo nível de entendi­mento. Ele era um cara muito bom. Não consigo imaginar alguém a quem eu dis­sesse ‘It’s getting better all the time’... e ele respondesse ‘It couldn’t get much worse’.

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